A campanha da Fnac «A cultura renova-se» (que abrange livros, CD e DVD), com a frase «Troque Os Maias pela Meyer», gerou polémica nas «redes sociais». Isto deixa-me preocupada. O que li mostra que somos um país sem humor, mesquinho e sem perspectiva sobre as coisas.
O ultraje manifestado roça o ridículo, nalguns casos. Li por todo o lado opiniões que diziam e insinuavam que «a Fnac está a querer comparar um bastião da nossa cultura e da nossa língua, o nosso Eça, a uma noveleira sem categoria»; «a Fnac, essa assassina de maravilhosas livrarias independentes, está a perverter leitores»; «era despedir imediatamente os responsáveis por isto»; «um verdadeiro atentado à leitura»; «o-mundo-está-perdido-onde-é-que-isto-vai-parar».
O que justifica este acesso de puritanismo generalizado? Bem sei que este é o espírito subjacente à maioria dos comentários em jornais, blogues e Facebook, mas chegar a essas conclusões a partir de uma mera frase publicitária é realmente espantoso.
As pessoas que clamam pela cultura e pela língua internet fora fazem alguma coisa séria por elas? E quantos deles já leram realmente Os Maias? Os livros da Meyer «desencaminham» leitores? Querem convencer alguém de que os vampiros existem? Incitam ao ódio? Pretendem ser uma obra-prima? São do pior que para aí anda? Seria melhor tirá-los de circulação? Será que só livrarias de fraca qualidade os vendem?
Uma afronta ao Eça são os livros pejados de erros que por aí se vêem, publicados por editoras que, essas sim, têm uma grande responsabilidade na qualidade do que transmitem aos leitores.
Por exemplo, se há coisa que me incomoda nessa frase é o facto de Os Maias não estar em itálico ou entre aspas e haver uma vírgula antes de «pela Meyer».
Saberão os nossos arautos da cultura-com-c-maiúsculo qual a diferença entre uma campanha publicitária e uma recomendação do Ministério da Educação? Saberão eles que as pessoas podem usar a própria cabeça para analisar e escolher? Serão capazes de deixar os outros pensar por si e respeitar essas opções em vez de adoptar uma atitude paternalista?
Calculo que quem leu Os Maias e as histórias dos vampiros dê pelas diferenças. Acredito que não vai ser uma campanha publicitária a convencer ninguém de que a Meyer é tão boa ou melhor do que o Eça (muito menos se essa campanha não diz tal coisa). Desde quando é o marketing das livrarias que fixa o cânone literário?
Sobretudo, e nunca é demais sublinhar, o Eça vale por si e perdurará pelos seus méritos, não precisa dessa defesa fácil e populista.
Imagino que quem está disposto a trocar Os Maias por outra coisa ou já os leu ou não leria de qualquer forma. Trocar essa obra por outra — dando talvez a melhor a um outro leitor — parece-me uma excelente ideia. Os nossos leitores em potência bem precisam de descobrir o prazer de ler. Os editores bem precisam de escoar o que produzem (eternamente em excesso). Quem não tem acesso a livros e beneficia com esta campanha agradece.
Os Maias é um livro que quase toda a gente tem em casa (por ser obrigatório estudá-lo no ensino secundário e por ser um bibelot tradicional) e que quase ninguém leu. Praticamente toda a gente já ouviu falar da Meyer. A campanha está bem feita porque se adequa exactamente ao público a que se destina. Está ainda mais bem feita porque tocou no nervo autoritário/intelectual wannabe de muita gente e com isso fez mais barulho do que teria imaginado. (É uma pena que a Fnac tenha cedido à pressão e recuado, mas até isso deu que falar e, portanto, saiu a ganhar.)
«Os Maias pela Meyer» é um bom trocadilho. «A Meyer pel'Os Maias» teria sido mais bonito, mas assim também está bem.
Numa caixa de comentários vi proposto um slogan alternativo: «Troque Camões pelo Camus». Tem piada, mas não seria tão eficaz e poderia ferir a susceptibilidade lusa. Os novos patriotas surgiriam dos seus esconderijos, indignados, exigindo satisfações.
Lembrei-me de «Troque a sua Bíblia pelo Evangelho Segundo Jesus Cristo», mas a Fnac teria a Igreja à perna. Ela incorreria no mesmo erro — levar a sério uma coisa que foi feita a brincar, para chamar a atenção.
Em Portugal, ao que parece, brinca-se muito à cultura mas com a cultura não se brinca. Que pena.
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Fnac e livrarias independentes
A reboque disto, aproveitou-se para dizer que a Fnac é o lobo mau do inocente e saudoso comércio tradicional. Quer se goste quer não, a Fnac fez muito pelos leitores de Portugal e continua a fazer — esta campanha, de certa forma, é a prova. Uma frase publicitária não deveria preocupar-nos. O espaço nas Fnacs dedicado aos livros, cada vez mais pequeno (porque os videojogos e os gadgets trazem mais gente às lojas), é que deveria deixar-nos alarmados. Não são só os senhores da Fnac que optam por diminuir este espaço, somo nós, consumidores de livros, que não aumentamos em número e que optamos por outras coisas. Da mesma forma, a Fnac não matou as livrarias independentes. Fomos nós que deixámos de lá ir e/ou elas que se suicidaram lentamente. Todas as moedas têm dois lados, há que pensar neles e assumir as responsabilidades.
A solidariedade da campanha
Li também que a Fnac não era realmente generosa nesta acção, pois lucra alguma coisa com o assunto. Isto dá pano para mangas e este não é o sítio para o debater. Em todo ocaso, acrescento apenas que uma outra cadeia de livrarias, por exemplo, promoveu recentemente uma campanha em que convidava os clientes a comprar livros nas suas lojas e a doá-los, não oferecendo nada nem à instituição nem ao cliente.
A solidariedade da campanha
Li também que a Fnac não era realmente generosa nesta acção, pois lucra alguma coisa com o assunto. Isto dá pano para mangas e este não é o sítio para o debater. Em todo ocaso, acrescento apenas que uma outra cadeia de livrarias, por exemplo, promoveu recentemente uma campanha em que convidava os clientes a comprar livros nas suas lojas e a doá-los, não oferecendo nada nem à instituição nem ao cliente.
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