Num artigo anterior, expus algumas apreensões relativas ao rosto dos e-books. Agora falarei das minhas preocupações quanto ao corpo.
Todos os livros em papel são paginados. Há sempre alguém que espalha o
texto pela página e lhe dá forma. Antigamente eram os compositores, nas
gráficas, hoje em dia são os paginadores, ajudados por programas
informáticos. As escolhas subtis que os editores e estes profissionais
fazem influenciam o modo como reagimos ao livro: o tipo de letra, o
espaçamento entre linhas, a largura da mancha de texto e outros factores
afectam as sensações que temos ao ler, ainda que inconscientemente. O
simples facto de habitualmente termos duas páginas lado a lado e de
lermos da esquerda para a direita condiciona-nos muito.
A paginação nasceu com a imprensa, tem a sua tradição, as suas
regras, as suas limitações e as suas fugas possíveis à norma. Um bom
paginador pode entrar para a história, como Olímpio Ferreira,
e deixar a sua marca pela originalidade ou perfeição. Era assim com a
tipografia, assim se manteve quando a paginação passou a ser feita no
ecrã, mas, no que toca aos livros digitais… não sabemos como vai ser.
Em e-books de texto corrido, a paginação deixa de existir no
sentido habitual do termo, pois passamos a ter páginas dinâmicas sem
grande formatação. Nos e-books ilustrados vemos que os autores e
editores, em grande parte, se têm afastado do conceito tradicional de
livro para tirar partido das novas potencialidades interactivas, optando
por «livros animados» ou enhanced e-books (veja-se o caso de Mr. Lessmore ou do iPoe). Assim, que espaço há para a arte de bem dispor palavras na página? Graças como as que vemos neste livro da Orfeu Negro (na imagem acima), ou neste
da Assírio & Alvim, serão possíveis num livro electrónico? No futuro,
como serão por dentro os livros 2.0? Se um livro tem uma paginação
ajustável, que se adapta às características de cada aparelho leitor — o
mesmo livro pode ser lido na grande tela de um iPad, na tela média de um Kindle ou na de um telemobilis vulgaris —, qual o papel do paginador?
Além da questão do tamanho do ecrã, depois ainda há as preferências
do utilizador — quer ler o texto em que cor, em que tamanho, em que tipo
de letra? As decisões unilaterais e definitivas que dantes pertenciam à
editora agora cabem ao leitor. Isso é simultaneamente bom e mau: bom
porque o leitor pode melhorar a sua experiência de leitura, adaptando-a
aos seus caprichos e necessidades (não é óptimo que um míope, por
exemplo, possa regular o tamanho da letra?); mau porque o editor e a sua
equipa deixam de poder embutir no texto algumas características
próprias. Ao tornar o seu produto mais universal, a editora também o
torna menos especial.
Mas os e-books ainda têm de ser paginados, não é? Alguém tem
de formatar minimamente o ficheiro. Ler puro texto corrido, sem
hifenizações na quebra de linha, sem hierarquias de títulos e outras
pequenas grandessíssimas coisas seria desagradável, tal como seria muito
aborrecido lermos volumes inteiros num formato estático, estilo PDF —
estaríamos a cansar-nos desnecessariamente e a subaproveitar a
tecnologia.
Depois há problemas que a paginação digital (fluida) levanta, tal
como a falta de números de página, que pode tornar muito difícil seguir
um texto em conjunto numa aula ou citar passagens em bibliografias. (As
ferramentas de busca, que permitem pesquisar por determinadas palavras e
chegar à passagem, são apenas uma solução improvisada.) Tudo isso
acabará por ser resolvido mais tarde ou mais cedo, suponho.
Como é que actualmente se faz a paginação de um e-book? No
caso dos textos corridos, não é muito difícil paginar; tira-se partido
daquilo que já se usa em html: títulos, estilos, etc. No caso de «livros
animados», não é bem paginação, será quase design gráfico puro/montar
um filme/desenhar um jogo de computador.
Parece-me que, entre uma coisa e outra — livros de texto simples e livros de conteúdo complexo — há espaço para nascerem layouts inventivos que funcionem bem em e-book e que permitam à editora moldar mais e melhor texto e imagens. Veremos layouts que se inserem num modelo «scroll down
infinito», num de «páginas sequenciais» (como no livro físico), em ambos
os modelos ou surgirá algo completamente diferente? Está tudo em aberto.
Até ao momento, pelo menos, a grande maioria dos livros electrónicos
que tenho lido são bastante rudimentares em termos de paginação e em
nenhum deles a disposição gráfica do texto é especialmente agradável e
eficaz.* Lêem-se, apenas.
Tenho muita curiosidade em relação ao que aí vem. Se tiverem pistas ou ideias, deixem-nas na caixa de comentários.
*Se usar um conversor de ficheiros como o Calibre,
então, a paginação dos novos ficheiros fica desastrosa, cheia de
formatações perdidas. É o que acontece comigo, pelo menos (não excluo a
hipótese de ser eu a parte inábil).
PS: Depois de ter escrito o artigo e pensado mais no assunto, apercebi-me de que uma das minhas perguntas é um tanto disparatada: «Graças como as que vemos neste livro da Orfeu Negro (na imagem acima), ou neste
da Assírio & Alvim, serão possíveis num livro electrónico?» É claro que serão. Dará trabalho, mas sem dúvida que se consegue fazê-lo. Simplesmente, os paginadores do futuro, além da sensibilidade estética e dos conhecimentos técnicos, terão também de ser bons a programar.
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