Tony Judt faleceu no passado dia 6 de Agosto. Na New York Review of Books deixou-nos as suas últimas crónicas. Destas, a minha preferida talvez seja Words, que agora traduzo em três partes, em jeito de homenagem (e sem pedir licença a ninguém).
[parte 1]
Cresci com palavras. Elas tombavam da mesa da cozinha para o chão, onde me sentava. Entre avô, tios e refugiados, arremessavam-se, numa sucessão vertiginosa, afirmações e interrogações em russo, polaco, iídiche, francês e numa espécie de inglês. Indigentes sentenciosos do Partido Socialista do Reino Unido passeavam-se na nossa cozinha, promovendo a Causa Justa. Passei muitas horas a ouvir os autodidactas da Europa Central discutir pela noite dentro: marxismus, zionismus, socialismus. Parecia-me que falar era o propósito da vida adulta. Esta impressão nunca me abandonou.
Quanto a mim – e para me integrar –, também falava. Para dias de festa, memorizava palavras, recitava-as, traduzia-as. «Oh, ele será advogado», diziam. «Encantará os próprios pássaros, nas árvores»: coisa que tentei nos parques, em vão, até perceber o sentido da expressão e a empregar durante a adolescência, também sem grande resultado. Por esta altura, passara das intensas trocas poliglotas para a elegância do inglês da BBC.
Os anos 50 – quando frequentei a escola primária – foram uma época em que o uso e o ensino da língua inglesa se faziam com rigoror. Aprendemos que a menor transgressão sintáctica era inadmissível. O «bom» inglês estava no auge. Graças à BBC e às newsreels que precediam as sessões de cinema, estabeleceram-se normas nacionais para o discurso correcto; a autoridade da classe e da região determinavam não só como as coisas deveriam ser ditas, mas também que tipo de coisas era adequado dizer. Os «sotaques» abundavam (incluindo o meu), mas eram classificados como sendo mais ou menos respeitáveis: tipicamente, em função da posição social e da distância geográfica de Londres.
Fui seduzido pelo brilho da prosa britânica no seu efémero apogeu. Vivia-se a era da literacia de massas, cujo declínio Richard Hoggart antecipou no ensaio The Uses of Literacy (1957). Culturalmente, emergia uma literatura de protesto e revolta. De Lucky Jim a Look Back in Anger, passando por dramas de realismo social no final da década, as fronteiras classistas da sufocante respeitabilidade do bem falar estavam debaixo de fogo. Mas os próprios bárbaros, no seu ataque à tradição, recorriam às cadências aperfeiçoadas do inglês que lhes fora ensinado: ao lê-los, nunca me ocorreu que para nos podermos revoltar temos de o fazer usando a boa forma.
Chegado à Universidade, as palavras eram a minha inclinação. Como ambiguamente observou um professor, eu tinha o talento de um «orador de língua dourada» – combinando (como eu queria acreditar) a confiança inata daquele meio e o olho crítico do forasteiro. Os docentes de Oxbridge recompensavam o estudante verbalmente capaz: o estilo neo-socrático («porque escreveu isto?»; «o que quis dizer com aquilo?») convidava o aluno solitário a explanar-se longamente, assim lesando o pupilo tímido, reflexivo, que prefere ocupar as últimas filas do anfiteatro. A minha fé interesseira na eloquência foi reforçada: não era apenas prova de inteligência, era a própria inteligência.
Terei notado que o silêncio do mestre nesta circunstância pedagógica era crucial? Quer como estudante, quer como professor, o silêncio nunca foi um dos meus fortes. Ao longo dos anos, alguns dos meus colegas mais ilustres tornaram-se reservados a ponto de se remeterem ao silêncio hesitante durante debates e até em conversa, pensando ponderadamente antes de se comprometerem com uma posição. Invejei-lhes esta capacidade de contenção.
Quanto a mim – e para me integrar –, também falava. Para dias de festa, memorizava palavras, recitava-as, traduzia-as. «Oh, ele será advogado», diziam. «Encantará os próprios pássaros, nas árvores»: coisa que tentei nos parques, em vão, até perceber o sentido da expressão e a empregar durante a adolescência, também sem grande resultado. Por esta altura, passara das intensas trocas poliglotas para a elegância do inglês da BBC.
Os anos 50 – quando frequentei a escola primária – foram uma época em que o uso e o ensino da língua inglesa se faziam com rigoror. Aprendemos que a menor transgressão sintáctica era inadmissível. O «bom» inglês estava no auge. Graças à BBC e às newsreels que precediam as sessões de cinema, estabeleceram-se normas nacionais para o discurso correcto; a autoridade da classe e da região determinavam não só como as coisas deveriam ser ditas, mas também que tipo de coisas era adequado dizer. Os «sotaques» abundavam (incluindo o meu), mas eram classificados como sendo mais ou menos respeitáveis: tipicamente, em função da posição social e da distância geográfica de Londres.
Fui seduzido pelo brilho da prosa britânica no seu efémero apogeu. Vivia-se a era da literacia de massas, cujo declínio Richard Hoggart antecipou no ensaio The Uses of Literacy (1957). Culturalmente, emergia uma literatura de protesto e revolta. De Lucky Jim a Look Back in Anger, passando por dramas de realismo social no final da década, as fronteiras classistas da sufocante respeitabilidade do bem falar estavam debaixo de fogo. Mas os próprios bárbaros, no seu ataque à tradição, recorriam às cadências aperfeiçoadas do inglês que lhes fora ensinado: ao lê-los, nunca me ocorreu que para nos podermos revoltar temos de o fazer usando a boa forma.
Chegado à Universidade, as palavras eram a minha inclinação. Como ambiguamente observou um professor, eu tinha o talento de um «orador de língua dourada» – combinando (como eu queria acreditar) a confiança inata daquele meio e o olho crítico do forasteiro. Os docentes de Oxbridge recompensavam o estudante verbalmente capaz: o estilo neo-socrático («porque escreveu isto?»; «o que quis dizer com aquilo?») convidava o aluno solitário a explanar-se longamente, assim lesando o pupilo tímido, reflexivo, que prefere ocupar as últimas filas do anfiteatro. A minha fé interesseira na eloquência foi reforçada: não era apenas prova de inteligência, era a própria inteligência.
Terei notado que o silêncio do mestre nesta circunstância pedagógica era crucial? Quer como estudante, quer como professor, o silêncio nunca foi um dos meus fortes. Ao longo dos anos, alguns dos meus colegas mais ilustres tornaram-se reservados a ponto de se remeterem ao silêncio hesitante durante debates e até em conversa, pensando ponderadamente antes de se comprometerem com uma posição. Invejei-lhes esta capacidade de contenção.